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"Em Pedaços" é um filme carregado por discursos, em uma trama dramática que explora de assuntos como reflexão familiar e o mundo judicial.

Fatih Akin é um diretor alemão de descendência turca cuja carreira teve início em meados dos anos 90. Foi reconhecido localmente no Festival de Berlin de 2004 pelo filme Contra a Parede e continentalmente no Festival de Cannes de 2007 pelo filme Do Outro Lado. Em sua obra, se destaca também um documentário que homenageia a música turca, intitulado Atravessando a Ponte – O Som de Instambul (2005). Com as honrarias de Melhor Filme Estrangeiro para Em Pedaços (2017) na última edição do Globo de Ouro, sua filmografia definitivamente atinge agora um alcance internacional.

Há motivos para comemorar. Assistir Em Pedaços é entrar em contato com um cinema carregado de discurso e ideologia, sem deixar de atentar-se para uma admirável consistência estrutural e narrativa. Cuidados que hasteiam uma bandeira explicitamente parcial perante situações que envolvem a política, a sociedade, a família e, em última instância, o meio ambiente.

Em um dia como qualquer outro, Katja Sekerci (Diane Kruger) não faz ideia das reviravoltas ingratas que está prestes a vivenciar. Depois de deixar o filho Rocco no trabalho do pai e marido Nuri (Numan Acar), ela passa a tarde descompromissada com uma amiga até descobrir, ao anoitecer, que o escritório serviu como local de um atentado terrorista. As únicas vítimas foram, justamente, os membros de sua família. Determinada a fazer justiça, Katja busca reunir provas ao lado do advogado Danilo Fava (Denis Moschitto), que por acaso também lhe fornece algumas drogas para “aliviar o sofrimento”.

Não é de hoje que se fala do papel da arte como reflexo de vivências e percepções temporais. Fatih Akin é hábil ao embutir ícones da intolerância em uma trama essencialmente familiar. Estamos aqui diante de uma trajetória de vingança. Guiada pela amargura, Katja sofre com amplitudes emocionais desumanas após o fatídico episódio. Bem diferente de Beatrix Kiddo ou Mildred Hayes, a personagem de Diane Kruger responde com passividade enquanto se encontra enclausurada pelas lágrimas que a chuva insiste reforçar.

A habilidade do diretor/roteirista em nos conectar com a protagonista é evidenciada na primeira cena: uma filmagem caseira de casamento, com direito à ênfase no som de aplausos e zoom na troca de alianças. Aproximação intimista cuja elipse subsequente não ousa interromper ao mostrar Katja, agora como mãe, de mãos dadas com o filho para atravessar a rua. Outras filmagens caseiras são apresentadas com igual ou ainda maior eficácia.

Diane Kruger tem como seu papel mais conhecido a atriz Bridget von Hammersmark em Bastardos Inglórios (2009). Como no filme de Tarantino, sua personagem mais uma vez torna a combater nazistas. Logo após o incidente, suas acusações recaem unicamente sobre uma palavra que deveria apodrecer nos livros de história. Sua hipótese é fundamentada na origem estrangeira do marido (turca, como a família do diretor) e aparece pouco convincente à primeira vista. Os próprios policiais não levam muita fé e tornam a investigar os contatos que Nuri tinha enquanto traficava drogas – informação que também aparece de surpresa.

 

Uma breve cena em que os sogros de Katja pedem, sem sucesso, para realizar o enterro no país natal é sucedida pela passagem que é, particularmente, a mais agoniante do filme. Sem sensacionalismo. Sem diálogo exuberante. Sem artifícios exagerados de fotografia ou edição. Apenas uma câmera acompanhando uma mulher escolhendo caixões. Quando vê um para o marido, expressa mínimas palavras e prossegue. Diante dos infantis, um silêncio. Não sei como a protagonista consegue permanecer em pé; nós simplesmente desabamos.

Dividido em três atos, Fatih Akin (cuja tradução livre do título original seria “Do Nada”) propõe reflexões não só sobre a falibilidade judicial, como também dialoga com os limites da tolerância. A natureza humana assume um curioso objeto de estudo por aqui. Como seres socialmente construídos, somos sujeitos à um conjunto de princípios que determinam com quem devemos ficar e como devemos nos comportar. Os pais de Nuri mencionados anteriormente são apresentados como construtores, formigas operárias conservadoras que impulsivamente culpam Katja por toda a situação e invariavelmente alimentam a real vilã, a xenofobia.

Após o primeiro ato (“A Família”), somos agraciados com sequências bastante energéticas de um julgamento (“Justiça”), realçada pela excelente atuação de Johannes Krisch como advogado de defesa (o que mais se aproximaria de um Hans Landa por aqui). Acompanhamos com certa segurança o desfecho de um processo que condenará os dois suspeitos, mas as surpresas não tendem a cessar.

O último ato (“O Mar”) é uma resolução sóbria de uma trama que já cava seus últimos recursos. O ritmo se torna mais dinâmico. Temos uma investigação paralela, uma cena de perseguição, uma possível redenção e uma pontinha de esperança. Porém, como as ondas de um litoral, nada que não volte para o mesmo lugar. Recursos como o travelling circular, o rack focus e um uso extremamente incidental da música reforçam a ideia de impunidade como agente de distorção da realidade.

Vale dizer que a trilha é de Josh Homme, frontman do Queens of the Stone Age e do Eagles of Death Metal. Em um show desta última em 2015, um ataque terrorista atribuído à fundamentalistas islâmicos deixou 130 vítimas. Vejo nessa escalação uma clara mensagem de que, independente da etnia e da crença, o ódio é capaz de alimentar as mais terríveis ambições e elas tendem a disseminar com mais facilidade do que a gente pensa.

Em Pedaços, representa dolorosas crônicas que ousam interligar significados de família, justiça e mar. Acompanhamos as falhas e tragédias de conjunturas e acabamos imersos naquilo onde, do nada, tudo começou. Onde um dia, do nada, tudo pode terminar.

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